[Num misto de crítica e crónica. Texto extenso, peço desculpa. Livre de spoilers. Não se esqueçam de ver o Grande Momento publicado pelo Ursdens, com João César Monteiro]
«Em "Darjeeling", perto do fim, a personagem de Adrian Brody, depois de uma viagem em que nunca pareceu especialmente interessado no que o rodeava, dizia "nunca me vou esquecer do cheiro deste país" e falava do perfume a especiarias. Danny Boyle não conseguiu sentir mais do que o cheiro a merda. Cada um tem o nariz que tem.» (Luís M. Oliveira, in Público) Termina assim a crítica a Slumdog Millionaire. Aqui podem ver o texto completo: Viagens à Índia. Audácia? Sim, em parte. E um insulto gratuito, ou apenas radical, para explanar por completo o seu ponto. Sem dúvida um bom trabalho, nesse aspecto. Agora o meu ponto de audácia: parece-me uma crítica curta. Pelo menos em termos de conteúdo. Percebe-se em parte a comparação com outros cineastas (Luís M. Oliveira considera que Danny Boyle não é um cineasta) que filmaram, sob um olhar estrangeiro, a Índia. Mas comparar Darjeeling a Slumdog (e falando apenas neste exemplo) peca em especial pelos objectivos a que cada realizador se propôs. A Índia de Darjeeling era um colorido (sem tom depreciativo) manifesto sobre uma Índia mais próxima de um imaginário de aromas. Mais sonhada e fantasiada. Em Slumdog são poucas as personagens que escapam a clichés – importa mais o podre, por comparação a uma história de amor que pretende ser, passe também este lugar comum, maior do que a vida.
Parece-me que o que escapou a Luís M. Oliveira foi entender o etnocentrismo, que o há, no filme de Boyle – e é curioso recordar que os ingleses são o povo mais etnocêntrico do mundo. E censurou Slumdog, sem se aperceber do seu próprio etnocentrismo. A Índia que imagino tem qualquer coisa de violento, de imenso; a típica potência demográfica que tem tanto de fantástico como de bizarro. Falar de “especiarias”, de “viagens à Índia”, é apenas recordar os nossos próprios tempos de Descobrimentos, o fascínio pelo desconhecido que ajudou a construir o Império Português – mas que nem na altura Portugal foi o Quinto Império tantas vezes sonhado na cultura portuguesa. O campo lexical, nesta crítica de Luís M. Oliveira, é também bacoco, pobre, dá(-me) ideia de que não há estereótipo mais óbvio do que falar em “especiarias” quando se pensa na Índia – e aqui a palavra especiarias já não pode ser tomada apenas pelo seu sentido literal. Lá certamente que haverá mais do que caril e afins. Sabemos todos isso. Danny Boyle limitou-se a estilizar uma Índia extremamente rude. Não creio que seja apenas a Índia que viu, e que sem dúvida reduziu, mas sim uma espécie de mecanismo que permitiu construir a excelente peça de cinema que eu tive oportunidade de ver.
Desde Trainspotting que Danny Boyle se tornou um pequeno culto, que me é muito especial. Ver a sua obra de Zombies (28 Dias Depois) é perceber como uma filmagem acima da média, e a capacidade de levar a sério um tipo de filme habitualmente ridicularizado, pode criar uma excelente obra. E tudo isto a partir de uma história que, à partida, tinha pouco a dar. Há sem dúvida ingredientes muito semelhantes entre Slumdog e obras anteriores de Danny Boyle. Mas vejo isso essencialmente no tipo de edição e montagem, tão próprios, que em Slumdog são elevados a outro nível.
Um banal concurso televisivo, uma ideia curiosa de contar esta história através das justificações de Jamal para cada pergunta que acertou. A própria premissa deixava antever que o forte da obra iria estar no trabalho de realizador. Pense-se em Changeling, de Clint Eastwood, em que a história e os actores fazem o filme, e a realização é excelente precisamente por ser discreta. Danny Boyle escolheu o caminho contrário. Atrás das câmaras assume o destaque principal de tudo o que acontece no ecrã. São opções, criticáveis e aceitáveis ao mesmo tempo, e que em qualquer dos casos podem correr mal. Parece-me que foram as duas exemplares. Mas é de Slumdog que falamos.
E falar em Slumdog é também pensar na sequência de ritmos, na electrónica da “guerrilheira” M.I.A. que tão bem se enquadra no filme, na fotografia muito própria, no misto de difuso, tremido e estranho que são os planos (e respectiva edição e montagem) de Slumdog. Em todo o filme apenas os três miúdos, os três mosqueteiros, têm efectivamente valores ou qualquer coisa de atractivo. Da polícia ao apresentador, dos criminosos aos turistas, mais ninguém importou a Danny Boyle na construção desta história de amor. Salva-se aquele tríptico (e os miúdos que fizeram as diferentes fases de vida daquelas personagens são tremendamente expressivos.) Slumdog é diferente de tudo o que vai estar nestes Óscares (e até nas edições dos últimos anos, que conheço um pouco melhor). É majestoso, não num sentido perfeccionista do termo (e Slumdog está longe da perfeição), mas é reflexo de uma forma de ver e criar cinema diferente do que habitualmente é mainstream, alternativo, ou simplesmente aclamado pela crítica. Ou seja: é diferente de quase tudo. Ninguém filma como Danny Boyle. E a arte também passa por esse experimentalismo. E todos os anos há excelentes filmes, mas que pecam um pouco por falta de ambição, no sentido em que respeitam, dogmaticamente, os cânones do que é um bom filme – Atonement, para mim, teve esse problema, não aponto nada de mau no filme, excepto o facto de, por muito bem concretizado que tenha sido, parece sempre algo insonso.
Slumdog foi por outro caminho. Sim, tem muito de Trainspotting, sim tem também muito da inovadora obra que foi Cidade de Deus. E no entanto está num campo criativo bem diferente. Entre momentos perigosamente bonitos (no sentido de poderem ser vistos como lamechas) e personagens que servem o simples propósito de serem clichés (por que não é suposto gostarmos delas, estão apenas a prejudicar o caminho das personagens que dão o mote ao filme) Slumdog nunca se perde, doseia os ritmos sem nunca verdadeiramente abrandar. Surpreende, choca, faz rir e mesmo quando saído, literalmente, do meio da merda, consegue conservar uma dignidade tocante.
Não acredito que ganhe o Óscar. Posso até torcer por Slumdog mas não me irei aborrecer caso não vença. Não é isso que importa, e a mim já me surpreendeu tantos prémios e nomeações. No fim de tudo resume-se à diferença. Se há uma fórmula “correcta” para os filmes de hoje em dia, humildemetne digo que a desconheço. E, ainda humildemente, acrescento que a arte também tem (só assim pode viver) esta capacidade de surpreender, de arriscar e de por vezes não conseguir cumprir aquilo a que se propôs.
E Danny –boyle, com tudo o que lhe possam criticar, já criou um estilo próprio, válido e bem demarcado. Um pouco como Guy Ritchie, que nunca deixa de fazer filmes que vale a pena ver. Mas a grande diferença é que “deu o salto”. Arriscou e foi mais longe. E o absurdo é que até a musiquinha foleira do concurso “Quem quer ser milionário” ganha outro valor. E o genérico é delicioso, uma paródia ao cinema de Bollywood.
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Depois há duas almas infelizes no Ypsilon que dão bola preta ao filme. O mesmo que a Second Life... Pôr estes dois filmes no mesmo patamar é, à falta de melhor expressão, ridículo.