domingo, outubro 08, 2006
The Black Dahlia


No universo de The Black Dahlia, da autoria de James Ellroy e adaptado ao cinema por Brian De Palma, Hollywood é uma terra de sonhos destruídos, onde não há personagens boas, de coração puro e por corromper. É um mundo onde não se distinguem facilmente os dois lados da lei, ou o glamour da mais pura depravação. É o mundo onde encontramos Bucky Bleichert (Josh Hartnett), o narrador e o nosso “olhar principal” ao longo da trama. A acção situa-se nos anos 40 do século passado e ele é um boxeur e agente policial nos conta como travou amizade com Lee Blanchard (Aaron Eckhart), companheiro nos seus dois ofícios e que o ajudou na sua subida na hierarquia policial. Entre eles há ainda uma mulher, Kay Lake (Scarlett Johansson), ex-prostituta e companheira de Lee, que também a ajudou a reencaminhar a sua vida. Este trio ocupa uma posição central em toda a trama, iniciando uma estranha relação, marcada por uma clara tensão sexual latente entre Bucky e Kay. Mas claro que não poderíamos estar em território do noir sem a presença de uma mulher fatal (Hillary Swank) e, claro, de um terrível homicídio – neste caso, o de Elizabeth Short (Mia Kirshner), a Dália Negra, como a imprensa chamou esta aspirante a actriz encontrada morta e brutalmente desfigurada – uma história verídica e um dos crimes mais horrendos jamais ocorridos em Hollywood.

Calmamente, o filme começa por nos apresentar as suas personagens principais, sempre seguindo o ponto de vista de Bucky, estabelecendo rapidamente as suas relações – seja com o anteriormente mencionado duo, seja com o seu pai, já num muito debilitado estado de saúde mental. Igualmente importante é a forma como ficamos a conhecer os seus corrompidos valores morais, sabendo-o capaz de se deixar vender (tal como a maioria das personagens), ainda que muitas vezes o faça com a melhor das intenções (nem que seja para ajudar o seu pai, por exemplo). Contudo, e ao contrário do que muitas vezes tem sido dito em relação ao filme, é mesmo com a introdução ao caso da Dália Negra que o filme o seu ponto crucial. Porquê? Porque é a partir desse instante que parece haver uma bidireccionalidade nos pontos de vista, um conceito que dificilmente é melhor trabalhado no cinema actual do que por Brian De Palma. Isto porque a partir desse momento, o espectador passa também a ser um interveniente directo na acção ou, se quisermos, um cúmplice, com a entrada dessa obsessão quase doentia do realizador, o voyeurismo. Primeiro, porque se vê na obrigação de encarar directamente o cinema, sendo que quando nos coloca diante de uma tela, a assistir às gravações das audições de Elizabeth Short, é quase como se a estivéssemos a enfrentar directamente enquanto Elizabeth nos tenta desesperadamente seduzir, acabando irremediavelmente por se despir emocionalmente, expondo-nos toda a sua fragilidade. Esta situação chega a tornar-se particularmente dura de assistir, nomeadamente quando nos é mostrada uma cena de um filme feito por Elizabeth, onde toda a noção da câmara enquanto objecto violador é levada ao extremo e nós, espectadores, sempre deste lado a assistir revoltados mas incapazes de desviar o olhar – e num golpe tremendo de ironia, tal como Michael Powell fez em Peeping Tom, é o próprio Brian De Palma quem se coloca pessoalmente no filme como a voz e a figura monstruosa por detrás da câmara. E a verdade é que, tal como sempre, De Palma parece divertir-se particularmente ao deixar-nos nesta posição e, se virmos bem, o autor americano filma sempre as cenas de sexo do lado de cá de uma porta ou de uma janela, fazendo de nós mirones activos a espreitar despercebidos.

Neste sentido, The Black Dahlia surge como uma das obras mais difíceis de digerir e De Palma, tal como lhe reconhecemos, não se desvia por caminhos mais fáceis, acabando ele próprio por se encarregar de tornar tudo ainda mais excessivo. A começar mesmo pelo argumento, da autoria de Josh Friedman, que condensa um sem número de pequenos casos paralelos ao homicídio principal e que podem tornar-se algo difíceis de seguir por parte de espectadores menos interessados naquilo que o filme tem para oferecer, e que em condições normais, poderiam ter sido minimizados. Mas a verdade é que cada caso vai contribuindo para a evolução de uma narrativa que acaba por engolir tudo isso, e no final as pontas soltas acabarão por encontrar um rumo cuja aceitação está, também ela, dependente da forma como até então o espectador se deixou agarrar pelo filme. Como se sabe, De Palma é mais um contador de histórias visuais do que de narrativas bem arrumadinhas, e aqui o estilo assume uma preponderância pouco habitual no cinema actual. A começar pelos actores, que desde logo assumem uma postura clara do clássico film noir, com a própria debitação de diálogos a chegar-nos aos ouvidos de forma muito particular e algumas personagens surgem de composições claramente exageradas e tipificadas. Josh Hartnett revela-se ideal não pelas suas qualidades dramáticas (nunca foi um grande actor), mas sobretudo por essa característica tão inseparável desse género cinematográfico: a sua presença discreta e contida, quer física quer vocalmente (ao nível da narração, suave e quase inexpressiva). Os outros, sem se destacarem particularmente, revelam a solidez a que estamos habituados ainda que Aaron Eckhart e Hillary Swank consigam, a espaços, momentos particularmente intensos, sendo que Swank surge absolutamente perfeita como femme fatale e Eckhart defende uma das personagens mais complexas do filme. Mas no que a este departamento diz respeito, é Mia Kirshner que carrega às suas costas os momentos mais memoráveis do filme, numa aparição muito curta (e vista sobretudo através de bobinas a preto e branco) mas absolutamente marcante e das melhores do ano. Há algo na sua expressão magoada que atinge com força o espectador, o que é essencial ao sucesso do filme. Tinha de ser esta personagem, e não qualquer outra, a destacar-se e a chamar a si as atenções do espectador – porque é ela que dá nome ao filme, e é a partir dela que o filme atinge esse patamar inesquecível, e Brian De Palma percebeu isso perfeitamente, escolhendo a actriz perfeita para o papel exacto. Uma autêntica revelação.

Mas a grande estrela aqui é o cinema, no melhor e no pior dos sentidos. No melhor, porque temos aqui um verdadeiro espectáculo dado por um realizador absolutamente fabuloso. O seu dedo nesta obra é perfeitamente visível, estando as suas habituais marcas visuais espalhadas gloriosamente ao longo da película: temos magníficos planos-sequência como aquele em que o corpo de Elizabeth é encontrado, temos bizarros ângulos de câmara, temos a visão subjectiva (noutras palavras, a câmara representa, literalmente, o olhar das personagens), temos sequências magistralmente encenadas – repare-se na construção dessa cena crucial, nas escadarias, e repare-se na força de cada elemento cinematográfico combinado para nos oferecer um todo inesquecível (da música à iluminação). Torna-se assim também impossível não referir a excelência dos vários departamentos na concretização do filme: a música (de Mark Isham) é imperial na forma como nos envolve na trama; a montagem (de Bill Pankow) é virtuosa na maneira como esconde ou dá a entender certos elementos, de acordo com as necessidades do filme, na melhor tradição do policial; depois temos mais uma mostra de todo o talento de Dante Ferretti no design de produção e a fotografia de Vilmos Zsigmond, que funciona também como um elemento essencial onde a luz não serve efeitos simplesmente decorativos, mas também (e sobretudo) narrativos. Resumidamente, estamos diante de uma amostra do melhor que o cinema tem para nos oferecer quando os meios o permitem, e mesmo os detractores do filme concordam que estamos diante de uma das obras visualmente mais bem conseguidas do ano. Por outro lado, aquilo que não nos sai da cabeça no final, é essa visão tão negra e desencantada sobre Hollywood com que o filme nos deixa. E, no limite, The Black Dahlia é também um filme que nos depara com esses dois extremos, o sonho e a realidade, o brilho e o negrume da Meca do cinema. Se virmos bem de perto, encontramos mais do que uma simples homenagem ao cinema noir americano da época, e sim um horrível retrato dos recantos mais escuros da mente humana. E uma das obras máximas do ano.

posted by Juom @ 3:40 da tarde  
2 Comments:
  • At 5:40 da tarde, Blogger Ana Silva said…

    Caro colega Paulo, grande crítica ãh? Também estou muito expectante em relação a este filme, espero vê-lo em breve, e aí direi de minha justiça. Já agora aproveito para te dar as boas-vindas ao nosso blog ;) welcome!

     
  • At 6:02 da tarde, Blogger Juom said…

    Pois, se calhar excedi-me um pouco no comentário e isto às tantas deve estar uma seca de ler, mas confesso que tinha de deitar cá para fora as minhas razões por ter adorado este filme. É um que dá ser fanático do Brian De Palma.

    Prometo aos leitores que tentarei ser um pouco mais sucinto nos próximos ;-) Obrigado pelas boas vindas. I'll do my best :-)

     
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