sábado, setembro 30, 2006
Lady in the Water


A cada novo filme, M. Night Shyamalan dá mais um passo rumo à afirmação total do seu cinema, sem olhar muito para as suas consequências. Pela primeira vez desde O Sexto Sentido, o seu nome não bastou para levar as pessoas ao cinema, nomeadamente depois da frieza com que A Vila foi recebido nos Estados Unidos para o qual muitos espectadores olharam com uma certa desconfiança e que muitos críticos arrasaram por completo. Lady in the Water acabou, assim, por se revelar como uma consequência lógica dessa evolução, que resultou no seu primeiro grande fracasso de bilheteiras pós-Sexto Sentido. Claro que tudo isto também se pode dizer de outra forma: os fãs do realizador, aqueles que se deliciaram com A Vila e com o amadurecimento do estilo, irão provavelmente também deixar-se seduzir por esta sua nova pérola, sempre (mais do que nunca?) mergulhada nesses tons fantásticos, uma ode ao poder do sonho, da arte de contar histórias e... de as ouvir.

Cleveland Heep (Paul Giamatti) é o contínuo num condomínio habitado por gente comum: uma miscelânea de origens, credos, estilos de vida e de personalidades, cuja existência é interrompida pela chegada de uma misteriosa rapariga chamada Story (Bryce Dallas Howard), encontrada na piscina durante uma noite. Esta é uma das obrigações, quando se tenta comentar um filme de M. Night Shyamalan: parar com as sinopses precisamente quando parece que estão a começar a ficar interessantes. Não porque não se possa contar mais, nem porque os seus filmes mereçam um tratamento especial, mas sim porque uma das maiores delícias do seu cinema reside precisamente no saborear da lenta e detalhada evolução da narrativa, sempre tratada com essa sensibilidade tão peculiar. Os ritmos, as personagens, o humor, os diálogos... tudo tem um gosto único, uma marca definitiva de autor capaz de nos transportar para um mundo ímpar, onde reside antes de tudo mais, uma fé interminável no Homem – o seu prólogo é, certamente, dos mais belos momentos do filme, e deixa imediatamente claro o caminho que pretende seguir.

Além disso, há na evolução da sua obra recente uma tendência para acentuar essa mesma ideia de universalidade nos temas que tem vindo a tratar. Ou seja, convém reparar que dos protagonistas de O Sexto Sentido e Unbreakable, passamos para a família de Sinais e as comunidades de A Vila e agora Lady in the Water. Nestes últimos filmes predomina a ideia de um grupo, dentro do qual habitam uma grande variedade de personagens cuja orientação moral cobre os dois extremos do espectro até encontrar um confronto claro entre o bem e o mal. E é precisamente no confronto com essa ameaça de uma força misteriosa e exterior que se encontra essa união. Tudo isto para tocar no outro ponto crucial de Lady in the Water, que como já vinha bem explícito nas frases promocionais, se apresenta como uma história de embalar. À partida, isso pressupõe um recuo até àquilo que temos de mais puro em nós: a infância, e a capacidade de acreditar, e apenas o espectador que estiver disposto a largar tudo e fazer essa viagem até ao mundo de Shyamalan (a pessoa que, esta vez, se senta ao lado da nossa cama e nos conta uma história, e que no filme dá corpo a uma personagem cujas palavras podem mudar o mundo) irá sentir-se realmente próximo do filme, das suas personagens e... da sua mensagem – porque não há conto infantil sem moral.

E para nos contar esta íntima história de embalar, Shyamalan fez explodir na tela não só o seu talento especial na encenação e na composição, mas também o dos seus colaboradores – desde a soberba fotografia do australiano Christopher Doyle à arrepiante música de James Newton Howard (respectivamente estreante e quase totalista na obra de Shyamalan), a toda a criação cenográfica e mesmo digital (efeitos especiais que nunca chamam atenção sobre si mesmos, numa mistura totalmente orgânica com tudo o resto), de onde surge essa elegância ao mesmo tempo discreta e virtuosa. E quando se pode contar com actores com a categoria daqueles que fazem parte do elenco de Lady in the Water, as coisas tornam-se ainda mais fáceis. Paul Giamatti, que está como peixe na água nestes papéis mais contidos, mas sempre no limite, é fantástico a todos os níveis, e Bryce Dallas Howard possui aquela aura de mistério e de inocência imprescindíveis à composição da personagem. Pode não ser uma obra perfeita a todos os níveis (há, a espaços muito curtos, alguma dificuldade em manter coesão entre todas as suas ideias, embora nada de preocupante), mas quando alguém nos consegue envolver desta forma, explorando tão profundamente os nossos medos mais íntimos e fazendo-nos acreditar (nem que seja apenas enquanto dura o seu filme), então só podemos estar gratos. Está a um pequeno passo da perfeição, e Shyamalan cada vez mais destacado no lugar que merece, como um dos mais interessantes cineastas americanos da actualidade.

posted by Juom @ 1:03 da tarde  
16 Comments:
  • At 2:26 da tarde, Blogger P.R said…

    Confesso que depois da critica esmagadora ao filme, as minhas expectativas eram quase nulas. Mas agora, e devido a críticas como a tua, estou desejoso de lhe por os olhos em cima... Depois trocamos impressões ;). abraço

     
  • At 3:42 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Sempre acreditei que não seria tão mau como o pintaram. Mas ainda que me tenha maravilhado, creio que o filme está num patamar um pco mais abaixo que todos os filmes que vi dele, e de que A Vila é, a meu ver, a obra-prima por excelência.
    É um conto de embalar à Shyamalan, e isso é sem dúvida fabuloso.
    Mas confesso que não suportei a personagem do crítico de cinema. Um descontrolo quase imperdoável...

     
  • At 4:02 da tarde, Blogger Juom said…

    Pedro, se és fã do homem, creio que vais gostar de Lady in the Water. As críticas americanas são apenas uma continuação daquelas que lhe haviam sido dirigidas aquando da estreia d'A Vila. Nada de preocupante, portanto ;-)

    H., percebo o que dizes em relação ao crítico de cinema, e acrescentaria que Shyamalan interpretar um escritor tão maravilhoso e capaz de mudar o mundo é também um sinal de alguma egomania da sua parte. Mas o melhor é que dentro do contexto do filme, isso parece-me funcionar na perfeição, e é o que mais importa. :-)

     
  • At 6:01 da tarde, Blogger not_alone said…

    Bem, primeiro que tudo, Paulo, sê muito bem vindo ao blog.

    Sou forçado a ir contra a actual corrente (ao que parece exclusiva do nosso país) de dizer maravilhas de Lady In The Water. Não fossem os dois protagonistas e não havia sequer nada de bom, na minha prespectiva, a dizer. Eu detestei mesmo o filme. Achei que podia ter sido uma história interessante mas aquele argumento parecia uma estação de comboios a precisar de obras, tudo descarrilava.

    E já agora, eu gostei muito de todos os filmes de Shyamalan que antecederam Lady in the Water, incluíndo A Vila. Este na minha opinião é simplesmente péssimo.

     
  • At 7:34 da tarde, Blogger Juom said…

    Obrigado pelas boas vindas, not_alone.

    Quanto ao filme, realmente tem vindo a polarizar completamente os seus espectadores, algo que A Vila já tinha feito. É uma pena que não tenhas ido muito à bola com o filme - já tinha lido há uns tempos o comentário no teu blog e como te sei fã do senhor, contribuiu para aquele sentimento de que poderiamos estar diante do seu primeiro filme falhado - mas a mim encheu-me as medidas e não tenho parado de pensar nele desde que o vi.

    Espero que com esta chegada à Europa, o filme se livre de alguma má fama que conquistou pelas Américas e conquiste mais uns quantos espectadores ;-)

     
  • At 1:35 da manhã, Blogger gonn1000 said…

    Belo filme, apesar de maltraatdo por muitos, como "A Vila" (do qual também gostei muito). Tem os seus pontos fracos, é verdade, mas é dos melhores que vi este ano.

     
  • At 2:15 da manhã, Blogger Juom said…

    Sem dúvida, parece que é mais um fã para a galeria e mais um dos raros momentos em que eu e o Gonçalo estamos de acordo em alguma coisa :-P

     
  • At 11:48 da manhã, Anonymous Anónimo said…

    eu gostei da vila por isso isto não vai ser uma continuação das criticas que já vinham de trás...eu acho este filme mau...mau mesmo. A história é original e podia ter sido muito boa , mas tudo é feito depressa demais, parece que o realizador está com pressa para acabar o filme. quer dizer..."olha, temos que ajudar uma ninfa que encontrei ali na piscina" "vamos lá então"...o filme é assim, ninguém no prédio coloca em dúvida o que ali se passa, simplesmente aceitam de bom grado como se aquilo fosse algo normal...não se nota (exceptuando o actor principal) nas personagens a fantasia em que estas foram envolvidas, parece mais um dia normal...uma rotina, "vamos lá ajudar a ninfa para ir fumar mais um cigarro..."...o filme tinha tudo para dar certo...mas não assim!

    last_prophet
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  • At 12:28 da tarde, Blogger P.R said…

    Last_prophet

    Lady in the Water é, como é sugerido imensas vezes no filme, uma história de embalar, um conto fantástico e, como tal, nem tudo tem que parecer verosímel. De facto, todas as histórias têm acontecimentos inexplicáveis, como alguém comer uma maça e dormir eternamente, como um lobo mau se mascarar de avozinha ... Porque é que este filme não pode ser uma dessas fábulas? Porque tudo tem de fazer sentido à luz da forma como olhamos a realidade?

     
  • At 7:43 da tarde, Blogger not_alone said…

    Eu concordo totalmente com o/a Last_prophet. Uma coisa são acontecimentos inerentes à fábula, outra coisa são os disparates que ali nos são mostrados, sem uma nesga de sensibilidade ou creatividade. São tudo ideias muito giras que simplesmente não funcionam como um todo. Lobos feitos de relva? Meninos que lêm o futuro em caixas de cereais? A minha capacidade de encaixe tem alguns limites, especialmente quando me apercebo do rídiculo das situações e da pouca inteligência com que foi construída a obra.

     
  • At 10:52 da tarde, Blogger P.R said…

    Pouca inteligência? Sem uma nesga de sensibilidade? Há mais inteligência e mais sensibilidade num plano de lady in water que em muitos filmes estreados este ano

     
  • At 10:36 da manhã, Anonymous Anónimo said…

    não digo que não haja inteligencia no filme mas realmente essa de ler o futuro em caixas de cereais...suponho que se fosse em um filme português todos iam achar ´rídiculo...pois eu acharei sempre.

    o filme tem realmente planos mágicos porém não funciona como um todo..."há individualidades...mas não há equipa...e assim não se ganham jogos"

    last_prophet

     
  • At 12:10 da tarde, Blogger P.R said…

    Desculpem a insistência ... mas ver o futuro por um espelho mágico também não é "supostamente" rídiculo? Amigos Lady in the Water é uma fábula, a bedtime story. Se não formos ver o filme com essa noção, aí assim tudo parece ridículo. É uma questão de acreditar...

     
  • At 3:08 da tarde, Blogger Juom said…

    Concordo em absoluto com o Pedro, e não posso concordar com o last_prophet nem com o not_alone precisamente porque o filme nunca poderia existir sem cenas como essa, como ler o futuro nas caixas de cereais ou os monstros feitos de relva, porque... o filme é precisamente sobre isso. Convém não esquecer que esse prólogo não se refere exclusivamente às personagens do filme, mas ao Homem como sendo todos nós, que perdemos essa capacidade de escutar/acreditar em certas coisas. E é precisamente por isso que as personagens do filme aceitam aquilo simplesmente que lhes é dito por Cleveland: porque vivem num mundo cinzento, hermético e estão dispostas a dar esse passo que as leve para fora dessas suas vidas em busca de algo grandioso - aquele condomínio é um microcosmos que de certa forma reflecte o actual estado da humanidade (personagens de diferentes raças e origens), cínica e cada vez mais homogénea. Tal como em todos os contos de fadas, há aqui uma lição de moral a retirar do filme, e há barreiras que separam o mundo real desse imaginário que, sem qualquer excepção, existe em cada ser humano. A nossa sorte, é que Shyamalan não tem medo de expor o seu no cinema.

     
  • At 5:33 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    o grande problema é que o Homem que aparece no filme é um um Homem que parece que acredita em tudo o que vê. Ok, há quem acredite, mas também há quem não acredite. porquê não confrontar os dois Homens? O que acredita na fantasia e um mais realista? Porque é que todos os personagens do filme são do género "ajudar uma sereia , eu ja sabia que isso existe , vamos la, é na boa!"

    Mas acredito que o shyalaman vai conseguir surpreender no futuro.´

    last_prophet

     
  • At 6:57 da tarde, Blogger P.R said…

    Last_prophet

    A presença de uma narf representa para aquelas pessoas um refúgio à sua próxima existência, um sair da letargia que os adormecia, o acreditar que algo pode existir para além daquilo que vemos e acreditamos que é real. É isso que o filme demontra, a crença na humanidade. Existe uma parte do filme que é fundamental que é quando uma das personagens diz que tudo pode não passar de um mito, que toda aquela história não exista de verdade. e é aqui que outra personagem surge, a chinesa, que diz que aquele é o momento para tornar as histórias reais... Aquele era o momento para acreditar na capacidade transformadora do homem!

     
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