quarta-feira, março 15, 2006
Coisa Ruim


Quando se vê um bom filme, ficamos sempre com a esperança de que o próximo seja tão bom ou melhor. Quando se vê um bom filme português essa sensação ainda se acentua mais. Felizmente, Coisa Ruim não me desiludiu. Confesso que tinha grandes expectativas em relação ao filme, principalmente pelo tipo de argumento e pelo seu autor, e de facto, é um filme muito bom e, na minha perspectiva, muito bem feito.

Começando pelo tipo de filme que se trata, é impressionante como uma história aparentemente normal nos é contada e mostrada de forma a causar-nos alguns arrepios na espinha. O que vai crescendo em nós durante o filme é uma espécie de inquietude, uma sensação ondulante, que ora nos faz pensar que realmente é tudo obra imaginária, ora é a pura realidade do misticismo e da religião, e consequentemente, da pena dos pecadores. Quer queiramos quer não, Coisa Ruim passa também por uma forte crítica ao religioso, à função da Igreja, às verdadeiras funções paroquiais, às crenças que por vezes julgamos tolas e sem fundamento, mas que para muitos são a sua razão de viver. Assim, através de muitos dos diálogos entre as personagens, podemos confrontar o racional versus o emocional, de tal forma que damos por nós a tentar situar-nos, a pensar até que ponto somos levados por aquilo em que acreditamos, ou se, contrariamente, somos “independentes de alma e espírito” e só acreditamos no que queremos.

De facto, é através das diferentes personagens que nos vamos envolvendo no filme, sendo impossível não apontar alguns desempenhos que, francamente, me surpreenderam, como aconteceu acima de tudo com Afonso Pimentel. A sua personagem, que à partida se assume como um jovem normalíssimo, com vontades e desejos contrários às dos seus pais, torna-se de tal modo absorvente que não conseguimos desligar-nos dele. A sua intensidade, a complexidade de espírito, a ambiguidade da postura, a força do olhar e o discurso tão céptico e seguro, deixam-nos estarrecidos. Além disso, também Manuela Couto e Adriano Luz estão muito bem, tendo diálogos muito bem conseguidos e, na minha opinião, muito ricos, demonstrando as inquietações de mãe e a postura forçada do pai de se manter despreocupado e muito “terra a terra”.

Por outro lado, também a figura do Padre Vicente, desempenhado por José Pinto é fundamental na história, que equilibra a balança com uma convicção extremamente forte nos mistérios de Deus, que movem tudo à sua volta, e deixando sempre em aberto a crença de que todos nós podemos voltar um dia, independentemente de como voltamos ou para que voltamos.

Por fim, no que diz respeito à realização, está fantástica. Existem cenas muito boas, muito bem pensadas e que encaixam perfeitamente. Os elementos escolhidos como peças centrais do filme são captados de uma forma tão meticulosa e especial, que de facto, uma simples janela, ou um copo de vidro podem fazer toda a diferença. Também a casa é extraordinária, assumindo-se quase como uma personagem, tal são os seus contornos estranhos e as suas cores tão insípidas e envelhecidas, rodeada de mato como quem se quer proteger e isolar do mundo.

Gostei muito do filme essencialmente por não ser como todos os outros que vivem do típico ranger da porta ou das músicas acutilantes. É, efectivamente, do argumento e das personagens que se constrói este filme, esses sim acutilantes e de grande qualidade. Além disso, é também curioso como este filme, sendo tão incisivo na sua crítica pela clareza do texto, consegue, ao mesmo tempo, não tratar o Diabo como sendo qualquer um. No fundo, até na ficção a inquietude permanece sempre… Não percam.


Classificação:
posted by Ana Silva @ 3:11 da tarde  
1 Comments:
  • At 9:30 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Coisa Ruim foi uma agradável surpresa deste ano. Funciona muito bem como retrato de um país profundo, dividido entre a religiosidade extrema e a superstição. Não é, de todo, um filme de terror. Não assusta. Mas não só entretem como o faz com qualidade. E ficamos a pensar um pouco mais numa faceta do país que habitamos...

     
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