quinta-feira, março 19, 2009
Che: Part One - The Argentine
O projecto já tinha alguns anos, e afirmava-se como um dos sonhos do actor que agora finalmente conseguiu dar corpo a 'Che' Guevara. Assinando os créditos como produtor, Benicio Del Toro voltou a juntar-se ao realizador Steven Soderbergh e, baseando-se nos escritos do próprio Guevara, realizaram esta espécie de épico intimista sobre a intervenção do argentino nas guerrilhas da América do Sul. O projecto acabou dividido em duas partes, com o primeiro agora a estrear e o segundo a caminho – chega-nos no início do próximo mês. Depois de vista a primeira parte, o mínimo que se pode dizer, é que se trata de uma das mais interessantes estreias do ano, e um trinfo técnico e artístico para todos os envolvidos.

'Che' Guevara será uma das mais controversas figuras políticas do século passado, um autêntico símbolo da revolução da América latina posteriormente transformado numa espécie de ícone pop. E logo aí salta à vista uma a primeira grande qualidade desta abordagem da sua vida: independentemente das suas convicções, o argumento de Peter Buchman nunca soa maniqueísta, conseguindo colocar essas ideias ao serviço da exploração da intimidade da sua personagem, integrando-as na história. Tal como não é necessário partilhar dos ideiais retorcidos de Travis Bickle para considerar Taxi Driver uma obra-prima, também não é de todo necesário conhecer de cor a obra de Karl Marx para reconhecer a excelência do filme de Soderbergh. Em boa verdade, Guevara é uma personagem fascinante, com a sua necessidade quase messiânica de espalhar a palavra da revolta popular e anti-imperialismo aos seus seguidores. Além do mais, sofria de um problema de saúde (asma), era extremamente culto e audaz, tudo características muito bem exploradas por Buchman. Talvez por se inspirar directamente nos diários de 'Che', esse intimismo chame mais a atenção, acabando por se revelar um dos pontos fortes do filme, partindo sempre de um ponto de vista muito pessoal sobre o seu protagonista.

Depois, como sempre, o filme está carregadíssimo dessa vontade de experimentação tão próxima aos projectos de Soderbergh, e tudo nele soa a exploração das possibilidades cinematográficas e novas formas de contar histórias. Por vezes (as sequelas de Ocean's Eleven, Full Frontal), os seus devaneios artísticos resultam em inconsequentes exercícios estilísticos, mas também são capazes de produzir obras de valor acrescentado. Como é o caso de Che: The Argentine, que desde logo dá continuidade às experiências que vinha fazendo nos últimos anos no domínio das rodagens em alta definição, com resultados impressionantes. Além da qualidade da imagem estar cada vez mais próxima da da película, este recurso ter-se-à revelado bastante mais cómodo e prático para movimentar a câmara nas selvas onde a acção foi rodada, e onde passamos a maior parte do tempo. Depois, porque com a montagem intercalada entre as imagens de 'Che' aquando da sua famosa visita a território norte-americano, e do tempo em que foi um dos líderes da revolução cubana, apoiando Fidel Castro na revolta contra o governo de Batista, confere ao filme essa sensação de flutuação temporal tão típica do cineasta que gosta pouco de barreiras. Com alguns planos de antologia, e a capacidade para aguentar nas doses certas os momentos mais contemplativos e algumas espectaculares cenas de combate, Soderbergh consegue aqui um dos seus mais impressionantes trabalhos de realização.

Mas claro que o último parágrafo não poderia deixar de ser dedicado à grande estrela da companhia. Benicio Del Toro, premiado por esta composição na última edição do festival de Cannes, é sem dúvida um dos maiores actores da sua geração, e volta aqui a brilhar a grande altura. Além das já referidas características de 'Che' que se revelam sumo vital para um actor se alimentar, junte-se-lhe as naturais semelhanças físicas entre Del Toro e a sua personagem (que são consideráveis), e tudo se torna mais fácil. Benicio não facilita, e aquilo que nos oferece é uma total imersão numa personagem difícil, mas da qual acabamos sempre por nos sentir invariavelmente próximos. O actor consegue ter a presença necessária para empolgar nos grandes discursos e na hora da tomada de decisões, e a fragilidade necessária para nos relembrar que, por detrás de um mito, seja ele qual for, está acima de tudo o homem. Felizmente, o filme não tenta ver 'Che' como um santo, nem como um demónio – terá sido ambos para diferentes pessoas – mas sim como um homem de convicções. Que essa abordagem seja feita com tanta classe, ainda melhor.

posted by Juom @ 11:25 da tarde  
6 Comments:
  • At 11:47 da tarde, Blogger not_alone said…

    O P. já me tinha dado a sua visão do filme, também a dele muito positiva. Estava reticente, o Soderberg parece-me um realizados um bocado instável e perigoso até. Mas, feitas as contas, ainda não vi O Argentino porque achava (e de certa forma ainda acho) que vai ser um filme maçudo e mesmo chato. Mas depois da opinião do P. e da tua crítica estou disposto a dar uma oportunidade à obra. Mesmo consciente de que 2h e tal de Che pode não ser o meu cup of tea... Mas grande texto, parabéns.

     
  • At 12:44 da manhã, Blogger Juom said…

    Não creio que seja "maçudo", tens lá algumas boas cenas de guerrilha e há ali drama forte para manter o espectador entretido. E Benicio Del Toro é carismático demais para nos fazer perder o interesse. Acho que devias mesmo dar-lhe essa oportunidade ;-)

     
  • At 10:41 da manhã, Blogger P. said…

    Esta primeira parte parece-me já mito bem conseguida. Se Guerrilha acompanhar a qualidade de O Argentino, então, no seu todo, esta peça de quatro horas e 20 minutos é do mais marcante que vamos ver este ano nos cinemas.

    Soderbergh experimentou, arriscou e parece-me ter resultado em algo excelente. Ele fez uma biopic bem diferente das que temos visto nos últimos anos. E o Benicio Del Toro, então... é de uma capacidade impressionante.

     
  • At 10:03 da tarde, Blogger Unknown said…

    Ainda não vi, mas espero que o cineasta consiga ter levado a bom porto esta difícil adaptação de um ícone do século XX.

     
  • At 3:10 da tarde, Blogger Álvaro Martins said…

    Também ainda não vi mas estou ansioso.

     
  • At 11:57 da tarde, Blogger Unknown said…

    Eu gostei bastante do filme e partilho exactamente da mesma opinião que tu, tanto ao nível de conteúdo, como ao nível da nota final. Espero ansiosamente pela segunda parte.

    Abraço

     
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