quarta-feira, outubro 21, 2009
A propósito de Caim, Saramago e a Igreja
Declaração de interesses: Ainda não li Caim. Não sou católico. Da Bíblia li, há não muito tempo e por outras razões que não de fé, o Génesis e partes do Êxodo, do Levítico e do Apocalipse.

Leio Saramago praticamente desde que leio romances. Descobri-o pela minha mãe, leitora de há muito (bem antes do Nobel de 98). Acho-o soberbo, precisamente em toda aquela “estranha” pontuação que leva tantos a dizerem que não sabe escrever. Ele sabe escrever. E por muito que um Nobel possa (e até deva) ser discutido, por muito que possa ter de subjectivo, acho-o um escritor incontornável do nosso tempo. Merecia o Nobel, mais do que qualquer outro romancista português vivo. (E sim, sem desprimor, mais do que Lobo Antunes. Mas isso são outras histórias.)

Saramago, nesta altura, não está ao seu melhor nível no plano literário. O que não invalida que seja extraordinário. Já fez melhor, apenas isso. Tem 85 anos e se há coisa que aprecio em tal idade é a liberdade acrescida de expressão que deve dar. Sejamos honestos, a morte assusta menos quando nos está tão próxima. E Saramago expressou-se.

Como ainda vivemos em democracia, e realço o ainda, sou daqueles simplistas que defende que ele pode dizer “coisas” destas. A fé deve ser discutida, o que não invalida que quem é crente possa ter alguma dificuldade em fazê-lo. Da mesma forma que aceito a ideia de que, tratando-se de fé, não a vou entender nesses moldes. Mas o que a Bíblia diz pode estar sujeito a interpretações (foi assim ao longo da história, mesmo no seio da própria Igreja). E pode-se criticar, de forma bruta e sem receio – e entenda-se que, se as pessoas devem ser respeitadas (criticadas, sim, mas não difamadas), uma instituição obedece às mesmas regras – a Igreja.

Pela web (fóruns, espaços de comentários em notícias, blogues pessoais ou colectivos, como este aqui) muitas opiniões têm proliferado. E denota-se, em demasiados lugares, o ódio (sempre presente) e a incongruência, que assombra. E não falo de quem acredita que Saramago – e os que o defendem – se arrependerá no leito da morte. Falo de quem se apressa a defender a liberdade de expressão quando se trata de caricaturas de Maomé, mas que já fica de “pé atrás” quando se trata d’ A Última Ceia. Saramago, que felizmente não é consensual, debruçou-se sobre a Igreja Católica mas pelo menos generalizou: culpa as religiões. Ponto.

[Quanto à última pseudo-bronca, do Eurodeputado do PSD que acha que Saramago devia renunciar à nacionalidade, o seguinte: o comentário é legitimo (também eu tenho de me esforçar por ser coerente). É legitimo, sem dúvida. E tonto]

Heresia:

Na origem etimológica da palavra, herege é “aquele que escolhe”.
posted by P. @ 4:37 da tarde  
2 Comments:
  • At 3:37 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Descobri a 1ª página de Caim em Saramago e Caim: Humor Divino

    Acho que para uns vai ser um livro muito interessante, enquanto outros vão odiá-lo enquanto algo blasfemo. Eu até acho uma certa piada.

     
  • At 2:32 da manhã, Anonymous Anónimo said…

    "Much ado about nothing".
    Além de título de comédia de Shakespeare, aplica-se claramente a todo este mesquinho burburinho que se instalou neste país tacanho, de gente tacanha e pequena... Enfim. Nem sei por onde começar. As declarações de Saramago são escandalosas? Blasfemas? Não! São ridículas, porque comuns e banais, porque o conhecimento comum e rasteiro do Antigo Testamento leva inevitavelmente a essas conclusões: o Deus dos textos do Antigo Testamento é vingativo, cruel, sanguinário, guerreiro, etc, etc... E então? Grande lição, excelente comentário doutrinal deu o Nobel Saramago! Ninguém precisa deste comentário, porque todos sabemos que as personagens, a acção, as histórias e os poemas transmitidos pela Bíblia são, naturalmente, uma leitura religiosa da realidade. Basta pensar na investigação histórica (ou melhor, qualquer investigação!) para percebermos que temos de "ver" para além do relato, retirando a "espuma" da evidência, repito, da banalidade evidente, do literal.

    Por isso são superficiais e primárias as declarações de José Saramago, ignorando ou querendo ignorar a longa viagem e tradição de estudos teológicos e biblistas. Dá-me pena. Não quero ser condescendente, José Saramago pode dizer o que lhe apetece, e como aquilo que disse é espuma das ondas, superficiais e ridículas são também as reacções "inflamadas" de outros...
    Portugal parece uma aldeiazinha de província.
    Enfim. Mais um nada na vida portuguesa.
    João.

     
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